Conhecidos mundialmente pela
simpatia com que tratam o visitante estrangeiro, os brasileiros são menos
solidários com seus semelhantes ─ pelo menos quando o assunto é doar sangue.
Dados da ONU apontam que o
Brasil, apesar de coletar o maior volume em termos absolutos na América Latina,
doa proporcionalmente menos do que outros países da região, como Argentina,
Uruguai ou Cuba.
As estimativas, referentes
ao período entre 2012 e 2013 e obtidas com exclusividade pela reportagem da BBC
Brasil, fazem parte de um estudo ainda não publicado pela OPAS (Organização
Pan-Americana de Saúde), braço da OMS (Organização Mundial de Saúde) nas
Américas.
Quando se analisa a
totalidade de doações no continente americano, o país também fica atrás de
Estados Unidos e Canadá.
O estudo também revela outra
particularidade da doação de sangue no Brasil: seis em cada dez doadores
(59,52%) são voluntários (ou espontâneos, aqueles que doam com frequência sem
se importar com quem vai receber o sangue), proporção inferior à de Cuba (100%
são voluntários), Nicarágua (100%), Colômbia (84,38%) e Costa Rica (65,74%).
Segundo o Ministério da
Saúde, no ano passado, foram coletadas 3,7 milhões de bolsas de sangue, 200 mil
a mais do que em 2013 ─ uma alta de 4,55%. Já as transfusões cresceram 6,8% no
período (3,3 milhões em 2014 contra 3 milhões em 2013).
Ainda assim, em termos
gerais, somente 1,8% da população brasileira entre 16 e 69 anos doam sangue ─ a
ONU considera "ideal" uma taxa entre 3% a 5%, caso do Japão, dos
Estados Unidos e de outras nações desenvolvidas.
Isso não significa, por
outro lado, que o Brasil doe "pouco", mas sim que poderia "doar
mais", argumentam especialistas do setor da saúde à BBC Brasil.
"Não há notícia de que
está faltando sangue ou de que cirurgias estão sendo suspensas por causa
disso", diz Dimas Tadeu Covas, diretor-presidente da Fundação Hemocentro
de Ribeirão Preto. "Mas sem dúvida alguma as doações poderiam aumentar,
especialmente em períodos do ano em que o ritmo delas se reduz
significativamente", acrescenta.
A meta agora, segundo o
Ministério da Saúde, é ampliar o número de doações dos atuais 1,8% da população
para algo em torno de 2,2% a 2,3% nos próximos cinco anos.
Mas para alcançar tal
objetivo será preciso enfrentar desafios que ainda atravancam o potencial das
doações. Confiram quais são eles:
Quais os requisitos para
doar sangue?
- Estar em boas condições de
saúde e descanso;
- Ter entre 16 e 69 anos
(menores, a partir dos 16 anos podem doar acompanhados de um dos pais ou
responsável legal; maiores de 65 anos só podem doar se já doaram antes dos 60
anos);
- Pesar no mínimo 50 kg;
- Estar alimentado (evite
ingerir alimentos gordurosos);
- Apresentar documento
oficial de identidade com foto;
- Não ter tido hepatite após
os 10 anos de idade;
- Não estar utilizando
medicamentos;
- Não estar resfriado ou com
gripe;
- Não ter tido doença de
Chagas, Sífilis, Malária ou ser soropositivo de AIDS;
- Não ter feito tatuagem ou
colocado piercing nos últimos 12 meses;
- Não estar grávida ou
amamentando.
1) Falta de conscientização
Especialistas apontam a
falta de conscientização da população como um dos principais limitadores para o
aumento da doação de sangue no Brasil.
Eles defendem que campanhas
de incentivo à doação sejam feitas desde os primeiros anos de vida e que o
assunto seja discutido nas escolas para reverter o atual cenário.
"O Brasil não se
prepara para captar o doador desde criança. Sem essa política, não construímos
o doador do futuro. É preciso formarmos doadores com responsabilidade social
real", opina Yêda Maia de Albuquerque, presidente do Hemope (Fundação de
Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco), o principal do Nordeste brasileiro.
Yêda queixa-se da falta de
doadores voluntários, ou seja, aqueles que doam frequentemente sem se importar
com quem vai receber o sangue.
"Tenho muita doação de
reposição (pessoas que doam para parentes e familiares em caso de urgência), o
que não é ideal. Já o doador voluntário aumenta a qualidade do produto que a
gente oferece, pois conseguimos monitorá-lo", acrescenta.
Para Tadeu, da Fundação
Hemocentro de Ribeirão Preto, o entendimento de que a doação de sangue seja um
ato "social e contínuo" ainda não está totalmente presente na
mentalidade do brasileiro.
"É preciso um esforço
educacional em escolas e por meio de campanhas públicas para garantir que as
pessoas entendam a necessidade e se disponham a doar sangue regularmente".
Além disso, de acordo com os
especialistas, muitas pessoas ainda buscam doar sangue com o intuito de
"obter vantagens".
"Tem gente que vem aqui
com o simples objetivo de ganhar o dia de folga ─ previsto em lei. Ou mesmo
para fazer um exame laboratorial e confirmar se tem alguma doença, como o HIV
(vírus que transmite a Aids)", admite Joselito Brandão, diretor médico do
Instituto HOC de Hemoterapia, ligado ao Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São
Paulo.
2) Estigma
Segundo Naura Faria, chefe
de atendimento ao doador do HemoRio, hemocentro coordenador do Estado do Rio de
Janeiro, a doação de sangue no Brasil ainda é cercada de "mitos".
"Infelizmente, ainda
existem alguns mitos em relação à doação de sangue. Há pessoas que acreditam
que se doarem uma vez, vão ter de doar sempre. Outras acham que doar sangue
engorda. Existem ainda aquelas que temem contrair alguma doença infecciosa
durante a coleta", enumera.
"É preciso desfazer
esses mitos e informar a população sobre os benefícios da doação",
argumenta.
3) Herança cultural
Para Júnia Guimarães Mourão,
presidente da Fundação Hemominas, hemocentro coordenador do Estado de Minas
Gerais, o volume de sangue doado está relacionado "à cultura dos
países".
"Diferentemente de
países desenvolvidos, como o Japão ou os Estados Unidos, o Brasil não se
envolveu em grandes guerras ou passou por grandes catástrofes naturais, que,
acredito, podem ter criado em suas sociedades a compreensão da importância da
doação de sangue.
Ainda sob o ponto de vista
histórico, ela lembra que até a década de 80, o Brasil remunerava doadores,
prática que se tornou proibida pela Constituição de 1988, o que, em sua
opinião, "levou a sociedade a não se envolver com a necessidade de
realizar doações para garantir o tratamento de quem precisa"
"Nesses quase 30 anos,
temos visto mudanças, mas ainda há muito que caminhar", diz.
4) Deficiência estrutural
Segundo especialistas, não
basta apenas elevar o volume de doações, sem aumentar a "eficiência do
produto".
"Precisamos minimizar a
possibilidade de um descarte eventual do sangue já que se trata de um material
difícil de ser acondicionado", explica Yêda Maia de Albuquerque, do
Hemope.
Ela diz que muitos dos
hospitais do Nordeste não têm as chamadas "agências transfusionais",
espécie de filial dos hemocentros dentro dos centros médicos. Cabe a elas
gerenciar o estoque das bolsas de sangue e fornecer assessoria técnica.
"Imagine que o paciente
que deveria receber uma bolsa de sangue venha a falecer. Se não soubermos
disso, liberamos o material e ele será perdido. Por essa razão, quando não há
essas agências, que funcionam como uma comunicação entre o hemocentro e o
hospital, não tenho o alcance dessas condições", acrescenta.
Para Tadeu, da Fundação
Hemocentro de Ribeirão Preto, o problema central está no
"financiamento".
"Os hemocentros
trabalham numa lógica de financiamento que impede o oferecimento de serviços.
Não há recursos para investir em agências transfusionais na maioria dos
hospitais. Enfrentamos desafios não só na parte de capilarização quanto no
controle de qualidade", afirma.
"Como resultado, a
heterogeneidade do serviço é muito grande. Temos sangue produzido em
hemocentros que poderia ser tranquilamente usado nos Estados Unidos e na
Europa; outro sem a mesma qualidade do ponto de vista técnico. Tudo isso
decorre não só das dimensões continentais do país, mas também da insuficiência
do financiamento", explica.
Outra barreira aponta Faria,
do HemoRio, envolve a locomoção do doador até o centro de doação.
"Temos apenas duas
unidades móveis, capazes de fazer a coleta junto a potenciais doadores",
lamenta.
5) Normas e proibições
As normas e proibições ─
muitas delas polêmicas ─ também são consideradas por muitos um entrave ao
aumento no número de doações no país.
Até bem pouco tempo, por
exemplo, segundo contam os especialistas, menores de 18 e maiores de 65 anos
eram proibidos de doar. Desde novembro de 2013, a faixa etária passou de 16 a
69 anos.
"É mais fácil colocar
regras mais gerais para não cometer o equívoco de deixar a particularidade ser
avaliada caso a caso", explica Tadeu, da Fundação Hemocentro de Ribeirão
Preto, acrescentando que as decisões são baseadas em "estudos
epidemiológicos". "Sempre temos de trabalhar com o menor risco
possível".
"Mas as autoridades que
deveriam estar fazendo revisões periódicas dessas orientações nem sempre as
fazem", argumenta.
"No caso do Brasil, as
regras são similares às vigentes nos Estados Unidos e na Europa", lembra
Tadeu.
Uma dessas regras, por
exemplo, impede pessoas que tenham permanecido mais de três meses, de forma
cumulativa, no Reino Unido ou na Irlanda, entre 1980 e 1996. O veto foi
motivado pela Doença de Creutzfeldt-Jakob, cuja variante ficou conhecida como "doença
da vaca louca".
A proibição, no entanto, não
vigora na Inglaterra e no País de Gales, segundo confirmou o NHS, o SUS
britânico, à reportagem da BBC Brasil.
Outro veto polêmico envolve
homens que se relacionaram sexualmente com outros homens no período de 12 meses
anteriores à coleta. Para ativistas de direitos LGBT, a norma é
"discriminatória".
"O que deveria ser
levado em consideração é o comportamento de risco e não a identidade sexual.
Por que um gay que tenha um parceiro fixo não pode doar?", questiona
Welton Trindade, ativista LGBT e coordenador de mídia do grupo Estruturação,
sediado em Brasília.
Na América Latina, México,
Chile e Uruguai já permitem a doação de sangue por "homens que se
relacionaram com homens".
Outro lado
Segundo o Ministério da
Saúde, o Brasil não doa "nem muito nem pouco, mas o suficiente".
"Não podemos colher
mais do que a necessidade, senão desperdiçamos um bem tão precioso",
afirma à BBC Brasil João Paulo Baccara, coordenador da área de sangue e
hemoderivados do Ministério da Saúde.
Baccara admite ser
"crescente" a demanda por sangue "devido ao envelhecimento da
população e ao aumento da complexidade da medicina", mas diz que órgão vem
atuando para elevar o número de doações.
"Não se trata de captar
por captar, mas captar sangue de qualidade. Devemos trabalhar, sobretudo a
consciência das pessoas".
Por BBC.
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