segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A amizade colorida entre a matemática e a literatura.


A arte da escrita leva vantagem no duradouro relacionamento com a ciência exata. Da interação, surgiu o subgênero "ficção matemática", cujo expoente brasileiro é Júlio César de Melo e Sousa, mais conhecido pelo pseudônimo Malba Tahan.

A voz romântica de Roberto Carlos usou uma expressão matemática, em 1971, para resumir uma fossa amorosa: “Tudo em volta está deserto, tudo certo. Tudo certo como dois e dois são cinco”. Muito antes de a canção composta por Veloso existir, contudo, o escritor George Orwell havia mencionado a soma com resultado errado no clássico 1984 (1949). Era exemplo de falso dogma (se todo mundo acredita, isso se torna verdade?). Mas ele também não foi o primeiro. Quase um século antes de Orwell, Dostoievski já relativizava a questão em Notas do subterrâneo (1864): "Seja como for, ‘duas vezes dois igual a quatro’ é bem insuportável. (...) De mãos nos quadris, ela se atravessa no caminho e nos cospe na cara. Admito que seja uma coisa excelente, mas, se é preciso louvar tudo, eu vos direi que ‘duas vezes dois igual a cinco’ é também, às vezes, uma coisinha muito encantadora”.

Não é possível precisar ao certo quando começou o namoro entre literatura e matemática, mas sem dúvida a arte da escrita leva vantagem no duradouro relacionamento com a ciência exata. Da interação, surgiu o subgênero literário “ficção matemática”, do qual um dos maiores expoentes brasileiros é Júlio César de Melo e Sousa (1875-1974), mais conhecido pelo pseudônimo Malba Tahan, com o qual assinou o bestseller O homem que calculava (1938), agora relançado pela editora Record, em comemoração aos 120 anos de nascimento do autor, um dos ocupantes da Academia Pernambucana de Letras, embora fosse carioca.

No clássico da literatura brasileira, traduzido para mais de dez idiomas, um jovem árabe conquista reis, poetas e sábios ao resolver problemas aparentemente sem soluções por meio do raciocínio lógico. “Na obra do matemático e romancista as fórmulas ou equações matemáticas surgem de maneiras tão sutis quanto o conteúdo literário, como também ocorre em algumas publicações de Monteiro Lobato e Lewis Carrol (autor de Alice no País das Maravilhas)”, diz o doutor em educação matemática Maurílio Antônio Valentim, professor do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.

Se, para alguns, os cálculos, fórmulas e medidas soam pouco atraentes (talvez fruto de traumas decorrentes do ensino fundamental e médio), esse universo ganha novos ares quando associado à habilidade de escrever de maneira lúdica. Ao fazer as pazes com os números, fica mais evidente o potencial da matemática de seduzir por meio da complexidade, da precisão, dos enigmas, de quebrar a cabeça do leitor.


Para alcançar tal feito, personagens consagrados como Emília, do Sítio do Pica Pau Amarelo, e Sherlock Holmes, o detetive da obra de Arthur Conan Doyle, chegaram a protagonizar livros-desafios. Mas não é regra. Publicações como O teorema do papagaio, de Denis Guedaj, Tio Petrus e a conjectura de Goldbach, de Apostolos Doxiadis, e O diabo dos números, de Hans Magnus Enzesberger, conquistaram grande séquito de fãs pelo mundo com personagens aparentemente ordinários e abordagens da matemática extraordinárias.

Há ainda, narrativas com figuras reais, como o filósofo Bertrand Russell, peça essencial na elaboração de fundações lógicas do pensamento matemático. Na história em quadrinhos Logicomix – Uma jornada épica em busca da verdade, o estudioso se aventura no mundo dos cálculos. Independente do método, o importante, segundo o próprio Malba Tahan, era conjugar entretenimento e educação de maneira adequada, pelo bem do aprendizado e crescimento individual. Ou, como dizia o protagonista de O homem que calculava: "Por ter alto valor no desenvolvimento da inteligência e do racioncínio, é a matemática um dos caminhos mais seguros por onde podemos levar o homem a sentir o poder do pensamento, a mágica do espírito".

Júlio César de Melo e Sousa estava de passagem pelo Recife, em 1974, para uma série de palestras sobre educação, quando morreu, aos 79 anos, vítima de ataque cardíaco. Doze horas antes do incidente, o então repórter do Diário de Pernambuco Geneton Moraes Neto havia entrevistado o matemático e escritor. Mais de quatro décadas depois, pedimos ao jornalista para rememorar a experiência. Confira o depoimento exclusivo:

A ÚLTIMA FALA, O PRIMEIRO SUSTO.

Deve ter sido o primeiro susto que tive no jornalismo. Repórter iniciante, eu tinha meus dezessete anos de idade. Trabalhava no Diário de Pernambuco à tarde e fazia o primeiro ano de jornalismo na Universidade Católica à noite. Quando cheguei para trabalhar, pouco antes das duas da tarde, o então chefe de reportagem, Ricardo Carvalho, me perguntou, ansioso: "Você guardou alguma coisa da entrevista com Malba Tahan ou usou tudo na matéria que saiu no jornal de hoje”? Respondi com uma pergunta: "Mas por que”? E ele: “O homem morreu”! Teve um enfarte no hotel! Fulminante! A incredulidade se instalou no ar. Só havia uma coisa a dizer: "O quê”? Não é possível! Mas era: o escritor que me dera entrevista poucas horas antes, na sede do Diário de Pernambuco saíra do jornal para morrer num quarto de hotel, em Boa Viagem.

Eu tinha entrevistado o escritor Malba Tahan no final da tarde do dia anterior, na sala do então superintendente do jornal, Gladstone Veira Belo. A lembrança é clara: eu estava me preparando para deixar a redação e ir para a aula quando fui convocado a comparecer à sala da direção para entrevistar um visitante. Em situações normais, os pobres dos repórteres reagem com um muxoxo quando são chamados a fazer as tais entrevistas com visitantes (em geral, autoridades que dificilmente pronunciarão algo de relevante numa "visita de cortesia" aos bravos rapazes da imprensa...). Mas ali era diferente.

Posso até ter reagido com um muxoxo, mas o visitante era uma espécie de "ídolo" literário dos meus tempos de infância: eu tinha lido, para um trabalho escolar, o livro "O Homem que Calculava" ( ou terei ganhado de presente um exemplar? Aqui, minha memória claudica miseravelmente ). Depois, um exemplar de Maktub fora parar em minhas mãos. Maktub - a gente logo aprendia - queria dizer "estava escrito". A palavra "maktub", portanto, carregava um certo peso dramático: parecia avisar que a vida pode ser regida por maquinações indecifráveis do destino.

Os livros falavam de mundos mágicos e misteriosos, personagens que se moviam por paisagens orientais de uma beleza cintilante. O nome Malba Tahan tinha o poder de deflagrar, num passe de mágica oriental, essas lembranças "literárias". E lá estava ele: efusivo, entusiasmado, falava da visita ao Recife como se fosse marinheiro de primeira viagem. Guardei um detalhe: Malba Tahan trajava um paletó quadriculado. Fora visitar o Diário, na Praça da Independência, em companhia da mulher. Voltei às pressas para a redação para redigir a entrevista que seria publicada no dia seguinte. Zarpei para a escola. O escritor seguiu para o hotel. Estava escrito que aquelas seriam as últimas horas do autor de Maktub. Estava escrito que Malba Tahan, na verdade, nunca existiu: era apenas o pseudônimo de um professor de matemática carioca chamado Júlio César. Jamais visitara o Oriente. Que importa?

O que interessa é que tinha virado sinônimo de mundos mágicos, distantes, inalcançáveis. Estava escrito que, lastimavelmente, aquela seria a última fala de Malba Tahan - e o primeiro grande susto do jovem repórter. Estava escrito: maktub,. maktub, maktub."

Fellipe Torres - Diario de Pernambuco.

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