O legado, que também é um
pecado, daqueles que apostaram na política de conciliação ao invés de trabalhar
junto ao povo, deixa marcas na sociedade.
Como que uma sequência de
governos capaz de tirar mais de 40 milhões de pessoas da miséria permite o
crescimento de um fascismo social na sociedade?
Outras perguntas vêm a mente
nesse momento: Será que 13 anos de Partido dos Trabalhadores a frente de um governo,
que passou boa parte do tempo sendo bem avaliado e com amplo apoio popular, não
teria condições de interferir na conscientização e politização do povo?
Trataremos disso em 03 Atos.
Destaca-se que se entende
como caminho politizador, não a mera participação incisiva de pessoas em redes
sociais ou reprodução de notícias por whatsapp, mas uma reflexão aprofundada,
consistente com implicação prática na vida das pessoas. A possibilidade que ela
tem de se reconhecer quanto componente de uma classe social, empoderando-se e
interferindo nessa situação.
1° Ato: O Diagnóstico das
ações
Algumas opções políticas do
próprio PT ao longo dos anos ajudam a entender esse processo.
Voltemos a 2003 e busquemos
o programa que iniciou essa ação da retirada de milhões de pessoas da miséria,
o Fome Zero. Ele iniciou o processo de transferência de renda para pessoas
miseráveis no país, além de dinamizar economias locais, combater a fome e
garantir uma melhora na qualidade alimentar das pessoas.
Contudo, o governo petista
poderia ir além dessas ações, uma vez que mexia diretamente com as condições de
vida de milhões de pessoas em todo o país. Ao invés de aproveitar o momento
histórico, a conjuntura política favorável e os anseios de mudança para
potencializar esse programa e organizar o povo, decidiu interromper esse
processo.
No momento em que o programa
avançava no sentido de levar a sociedade civil para ações concretas na
participação e no monitoramento do Fome Zero, fomentando uma consciência
política coletiva, organizando as pessoas e realizando as reformas estruturais
que se seguiriam como a agrária, ocorre uma mudança de rumos políticos. O Fome
Zero criado no início de 2003 era substituído, já em 2004, pelo Programa Bolsa
Família.
Frei Betto, que estava a
frente do programa, afirmava que o Fome Zero tinha um caráter emancipatório,
pois além de levar a segurança alimentar, propiciava a articulação, a
conscientização popular e a possibilidade de mudanças estruturais. Já o
Bolsa-Família, mesmo sendo importante, tem um caráter compensatório e limitado.
Antonio Gramsci, italiano,
militante político e intelectual orgânico revolucionário, tratava de temas
relacionados à hegemonia e o papel da sociedade civil e política. Para ele, o
poder dos dominantes era exercido em decorrência da preponderância da sociedade
política (referindo-se, sobretudo ao Estado) sobre a sociedade civil, além de
neutralizar ideologicamente as outras classes. Segundo o italiano, seria
necessário construir hegemonia onde a sociedade civil primaria sobre a
sociedade política, sendo mais dirigente do que dominante. Sem a hegemonia, as
classe subalternas jamais terão condições de reger um projeto político-social.
O governo petista ignorou
Gramsci. A preponderância da sociedade política não garante hegemonia. O Fome
Zero poderia ser um instrumento de empoderamento da sociedade civil que teria a
força para se desdobrar em outras ações organizativas e fazer avançar um
processo político popular para além da sociedade política, e do ato de votar em
um partido eleitoral para representar esses anseios de mudança. Hoje, quem
cumpre a função de organizar o povo e boa parte dos trabalhadores do país são
as organizações religiosas neopentecostais que encontraram esse vácuo
organizativo. Esse é só um exemplo, em que a conciliação desmedida com os
grupos históricos dominantes, minou o governo do PT a longo prazo, por mais que
se considere as dificuldades existentes em um presidencialismo de coalizão.
Aliada a essa opção política
destaco mais dois pontos: o fato do governo não enfrentar as seis famílias que
monopolizam os meios de comunicação no país e de agir de forma anti-pedagógica,
sobretudo nas eleições de 2014, apontando para um projeto popular e aplicando
uma receita ultrapassada neoliberal. Não se aprofunda qualquer processo
democrático, nem se constrói uma hegemonia popular, sem democratizar os meios
de comunicação e sem implementar propostas apoiadas por uma base social que
cobra mudanças progressistas.
Todos esses elementos e
alguns outros que poderiam ser elencados nos ajudam a entender alguns fatos
sociais desse ano.
2° Ato – Os Efeitos
Chegamos em 2015. Em outubro
foi lançado um livro, já elogiado pela crítica, da filosofa e escritora Márcia
Tiburi, chamado “Como conversar com um fascista — reflexões sobre o cotidiano
autoritário brasileiro”. Ninguém imaginaria que em pleno 2015, após o início da
quarta gestão de um governo petista no Poder Executivo, esse debate faria
sentido.
O fascismo é o cancelamento
do diálogo, da tolerância e do respeito. Vai além, não se limita a querer
derrotar um projeto antagônico, mas através do ódio tenta justificar a
inferioridade e a destruição de seus opositores. Os exemplos históricos mais
agudos são episódios como do holocausto que ocorre articulado com o capital
monopolista europeu, em que o nazi-fascismo buscava justificar a eliminação de
grupos étnicos-sociais e levava aos campos de extermínio os judeus, comunistas,
ciganos, homossexuais entre outros. Hoje, o fascismo ganha nova roupagem em
pequenas ações, como no caso da jornalista húngara, que dava rasteiras e chutes
em refugiados sírios que tentavam chegar à Europa escapando da Guerra que a
própria Europa ajuda a patrocinar no seu país.
No Brasil, o fascismo
ingressa pelas entranhas desorganizadas e despolitizadas da sociedade civil,
ganha eco na imprensa, na sociedade política (vide as posturas do parlamento
brasileiro) e nas camadas conservadoras.
Ele está presente na
pichação da placa da ponte Honestino Guimarães em Brasília (estudante
assassinado pela Ditadura Militar, cujo nome substituiu o do antigo ditador
Costa e Silva na denominação da referida ponte), na irracionalidade das
agressões físicas ou verbalizadas à figuras públicas em hospitais, aeroportos e
restaurantes (vide o caso do Ministro Patrus Ananias em Belo Horizonte, do
ativista João Pedro Stédile em Fortaleza ou dos ex-ministros Guido Mantega e
Alexandre Padilha em São Paulo) que também atinge as pessoas comuns (vide as
agressões de cidadãos por estarem vestindo a cor vermelha em alguns locais
públicos), na intolerância crescente contra os negros e homossexuais nos
espaços públicos e redes socais (demonstrado em casos recentes como da atriz
Taís Araújo e do jogador Michel Bastos), em manifestações de pessoas
ovacionando sujeitos com perfis autoritários (a exemplo da recepção calorosa de
Jair Bolsonaro em Pernambuco no início de novembro) entre outras ações cada vez
mais freqüentes.
Como ressaltado em diversas
falas da deputada Érika Kokay, poderíamos dizer que o absurdo perdeu a
modéstia!
Poderíamos ainda nos
perguntar: Quais os efeitos desse fascismo social?
Certamente, o primeiro é a
negação da política. Esse, de fato, é um sintoma grave dos rumos da
representatividade política e cria saídas perigosas que flertam com clamores
autoritários. O termo política vem da polis, a qual implica a participação dos
cidadãos na vida das cidades. Negar a política é rejeitar esse avanço
civilizatório. Em outubro deste ano, uma pesquisa do IBOPE apontou os índices
de rejeição de mais de 50% à praticamente todos os candidatos presidenciáveis
do Brasil para as eleições de 2018. Ou seja, mais uma vez a repulsa toca
quaisquer partidos, independente do espectro ideológico. Algo, que aponta a
insuficiência democrática, porém não busca alternativas de ampliação
democrática, mas ao contrário, nega a política como saída factível.
Mesmo o PSDB, o qual carrega
a social-democracia no nome, ao se associar com porta vozes de um discurso
autoritário fazem mal à própria democracia, pois a busca cega pelo poder do
Estado pode engolir o próprio partido. Ademais, o discurso fascista que um dia
foi caricato e não ecoava, ganha as ruas e atinge os cidadãos de forma
indistinta como os xingamentos e a intimidação sofrida, por exemplo, pelo
jornalista do CQC, Guga Noblat, nas ruas de São Paulo recentemente pelo simples
fato de cobrir uma manifestação.
3° Ato – E agora, José?
Os programas sociais que
tiraram milhões da miséria foram fundamentais, porém preocuparam-se em criar
consumidores e exacerbou os valores individualistas da sociedade de consumo.
Hoje, aquele mesmo trabalhador que consegue viajar de avião e comprar geladeira
é aquele que desrespeita o diferente, que não se sente representado por
ninguém, que prioriza sua vida pessoal e atribui à meritocracia sua ascensão
social, não aos programas do governo.
A alienação social, própria
dos períodos fascistas, intercala-se com perfis religiosos conservadores e com
a incapacidade crítica de absorver as informações da mídia e das redes sociais.
Parece que mesmo nesse
cenário delicado, o governo petista ainda se perde nesse combate. Quem
imaginaria que viríamos em frente ao Ministério da Justiça, em pleno Estado
Democrático de Direito, um acampamento exigindo intervenção militar, ou seja,
cometendo um crime (Vide artigo 5°, XLIV, CF/88) e o governo inerte a tudo
isso.
O pessimismo não contribui
para solucionar esse problema. Na eleição de 2014, uma base social consistente
levou a vitória um projeto popular, implementado de forma conservadora. Faltam
03 anos para o fim do governo e há a possibilidade de eleger Lula por mais
alguns anos. Enfrentar esse tema com um governo apoiado pelas camadas populares
tende a ser menos espinhoso, sendo assim, ainda há tempo para isso. Contudo,
esse tempo está acabando e o impacto civilizatório de se omitir nesse momento
histórico será implacável com efeitos sociais ainda não calculáveis.
O legado, que também é um
pecado, daqueles que apostaram na política de conciliação de classes, ao invés
de trabalhar junto ao povo, deixa marcas na sociedade. O empoderamento, a
organização e a construção popular é a única saída aparente para o
fortalecimento da sociedade civil e a criação de hegemonia. O enfrentamento ao
fascismo social é urgente. Ainda é possível mudar esse cenário. Porém, o tempo
é curto e a barbárie já chegou!
Roberto Stuckert Filho/PR -
Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Advogado. Pós-doutorando no
Programa de Direitos Humanos e Cidadania da UnB. Integra a RENAP, o grupo
Diálogos Lyrianos: o direito achado na rua e a Consulta Popular. É Autor do
livro “O Novo Constitucionalismo Latino-americano: um estudo sobre a Bolívia”
pela editora Lumen Juris.
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