Esdras do Nascimento, grande
escritor brasileiro falecido recentemente, que ainda carece de um
reconhecimento maior da crítica contemporânea, me veio à mente quando assumi o
compromisso com a Carta Maior, de escrever este artigo sobre o maior partido do
país. Os títulos dos seus romances iniciais, "Convite ao Desespero"
(1964) e "Tiro na Memória" (1965), bem que poderiam servir de
inspiração para analisar a situação do PMDB e do PT, nos dias de hoje. Explico:
é que o PMDB atual é um tiro na memória do velho MDB, centrista e progressista,
da época da ditadura e o PT -seu parceiro principal de Governo- faz um mudo
convite ao desespero ao PMDB, para que ele permaneça silencioso e junto
consigo, para não governar o país.
Por mais importantes que
sejam os movimentos sociais de todas as ordens, -a ação extraparlamentar, a
ação sindical ou os movimentos de rebeldia espontânea- a luta política entre
partidos (novos, antigos, tradicionais ou não) é que vai determinar os destinos
políticos da sociedade num regime de democracia política. Até mesmo porque, em
algum momento, movimentos que tenham pretensão de exercer o poder para aplicar
seus respectivos programas vão ter que se expressar -dentro ou fora da ordem-
como organizações políticas. E vão ter que se relacionar com outras
organizações políticas para governar, mantendo ou mudando a ordem, consolidando
sua nova hegemonia e gerando novos consensos. Contra um regime de força, de
qualquer natureza, os destacamentos armados podem ser a própria organização
política que tome o poder, para proclamar a nova ordem. Na democracia, não.
O PMDB acelera, nos últimos
anos, a sua transformação não num partido da ordem (que sempre foi), mas num
novo partido unificado, conservador-neoliberal, estranho ao centrismo
democrático que esteve na sua origem, nas lutas pelo fim do regime de exceção.
Penso, ainda, que a forma-partido tradicional -verticalizada a partir de
lideranças carismáticas ou mesmo de direções centrais legítimas- vem se
tornando cada vez mais estranha à sociedade "digital-informática" na
época que vivemos. Esta superação histórica, ainda em curso, atinge todos os
partidos, mas o faz especialmente aqueles que, pela sua história interna,
tornam-se mais frágeis para resistir a outros impactos, como o vencimento do
prazo de validade das suas ambiguidades.
A política, tanto nas suas
conexões culturais como organizativas, já funciona neste tipo de nova sociedade
através de relações em rede com seus "núcleos dirigentes" informais,
que respondem, de um lado, a uma profunda fragmentação da sociedade de classes,
com suas novas reivindicações de direitos, que não esperam pelas decisões dos
partidos e, de outro, revelam a impossibilidade de uma burocracia centralizada
e distanciada da vida cotidiana, gerar políticas para responder às demandas da
variedade dos seus fragmentos.
Nesta sociedade, cujos
problemas mais graves são causados cada vez mais por decisões que vem de fora
do território e os seus conflitos, não só entre as classes, mas intraclasses
estão cada vez mais distantes da capacidade de interferência do Estado e dos
seus delegados políticos, os partidos -tal qual os conhecemos- tendem a
declinar nas suas funções até agora conhecidas. Isso embora não seja dominante
na crise do PMDB tem a ver com ele e também com os dilemas do PT. O PMDB marcha
para viabilizar, agora, novas reformas neoliberais e o PT, no seu “pragmatismo
responsável”, vem perdendo a sua capacidade utópico-transformadora, dentro da
democracia, que está na base da sua origem de esquerda, reformadora dentro da
ordem.
O PMDB, pelas suas peculiaridades,
é uma espécie de vanguarda da decadência desta velha forma-partido e o mínimo
que se espera do PT é que pelo menos ele não se torne a sua retaguarda. A
derrota das revoluções socialistas em escala mundial, a partir dos anos 80 e a
emergência do domínio pleno do capital financeiro sobre a nova ordem global
tornou desnecessárias as ditaduras. O novo modelo de permanência do capitalismo
é a democracia e, por meio dela, este poderá se tornar mais ou menos brutal,
mais ou menos violento, mais ou menos “social”, mas é dentro deste quadro que
se pode projetar a formação da nação.
O MDB fundado em 1965 era um
partido de enorme diversidade política. Seu grupo "autêntico" não era
apenas tolerado dentro do partido, mas formava, juntamente com quadros do PCB e
do PCdoB "infiltrados" (e em regra tolerados pelas direções
partidárias), uma inteligência política nova, que exerceu um importante papel
de valorização de velhas e respeitáveis lideranças democráticas como Ulysses
Guimarães e Tancredo Neves.
Estes líderes do campo
oposicionista tolerado pelo regime eram líderes da oposição democrática
“consentida” e é eles que vão controlar a transição conciliada e criar as
condições para a constituinte derivada: a democracia vem devagar e sob
controle. É possível dizer, hoje, que os marcos fundamentais desta conciliação,
que vai inclusive captando apoios dentro do próprio partido do regime (Arena)
-já no curso da transformação o MDB em PMDB (1980)- são os seguintes (que vão
sendo assimilados pela esquerda armada derrotada pela repressão), como preço a
ser pago para a chegada na democracia: a "naturalização" da anistia
restrita, que é "auto anistia", para os homens do regime (que
cometeram crimes comuns contra presos políticos) e é "relativa", para
a esquerda armada, que depende de processamentos judiciais para fruí-la; a
aceitação da eleição do Presidente pelo Colégio eleitoral, com a derrota das
"diretas já"; e a convocação de uma Constituinte não originária, que,
ao mesmo tempo que reflete uma maioria liberal-democrática, também reorganiza
alianças políticas, tanto no campo conservador-democrático, como no campo
liberal-democrático.
O MDB foi o partido da
conciliação, na transição que impulsionou a saída do regime de exceção para a
democracia, e se tornou no presente, depois de ser o estabilizador de governos,
a organização política (PMDB) que tem condições de estabilizar a implantação
plena do projeto de um novo ciclo de reformas neoliberais no país, compondo um
arco de alianças com tal destinação. Dissolvida, já no interior do PMDB, a
velha unidade em torno da luta pela transição democrática (subordinada às
exigências do regime de exceção em recuo), depois de ter cumprido a sua função
“estabilizadora de todos os Governos pós-88, entra em pauta a promoção de uma nova
unidade. Desta vez ela já é conservadora: envolve tanto os democratas
históricos do partido, como as novas gerações de lideranças de direita do PSDB,
que já abdicou há muito do seu manto socialdemocrata. Esta nova unidade, que já
se ensaiara em torno do bloqueio, na Constituinte, das reformas estruturais
mais complexas como a reforma agrária e a progressividade dos impostos, bem
como na reforma democrática do sistema político (um cidadão um voto), agora se
projeta de forma positiva e programática, para um novo modelo econômico.
Assim, este novo patamar de
unidade “moderada” e conservadora, forma o que é o PMDB de hoje: um partido,
até agora, indispensável para governar dentro da ordem, com mais de 2,3 milhões
de filiados, mas que se torna uma grande frente heterogênea, democrática e
liberal que, ao mesmo tempo em que mantém sua fidelidade à democracia política,
passa a exercer, em sequência, depois de 1988, primeiro, um papel estabilizador
dos governos que sucedem os governos militares; e, a seguir, conservador, no
terreno social e mesmo na questão do sistema apolítico. (É deste sistema
político, aliás, que dependem a manutenção da força eleitoral das suas
oligarquias políticas regionais e o seu enorme manancial de votos captados por
estas mesmas lideranças, que são força do partido no Brasil profundo).
A liderança política mais
importante, que representa a síntese do PMDB, antes da sua transição para o seu
giro explícito neoliberal atual, é o Presidente José Sarney. Egresso do regime
militar e do seu partido governista ousa receber, ainda durante uma transição
indefinida, Giocondo Dias (PCB) e João Amazonas (PCdoB), sinalizando que a
democracia política -mesmo que negociada e com restrições- vinha para valer.
Hoje, o Ex-Presidente representa cada vez menos o PMDB, não só porque se torna
mais difícil conciliar as demandas sociais, estimuladas pela democracia
política, com o papel conservador ou reacionário, que o partido, em regra,
exerce nos Estados importantes. Também porque o conjunto do partido, cada vez mais
atomizado, só firmará um novo grau de unidade -nas atuais circunstâncias- à
medida que se "modernizar" pela direita e aderir cada vez mais
claramente às medidas da ortodoxia liberal.
Florestan Fernandes, que
sempre se designava como da "extrema esquerda" petista, amigo do Ex-Presidente
Fernando Henrique e defensor-admirador do Ex-Presidente Lula -emérito
integrante da nossa bancada federal na Câmara- sempre separava as “mudanças
possíveis”, numa ordem social determinada, com a seguinte disjuntiva: as que
poderiam se dar numa revolução, através de uma sequência de reformas "dentro
da ordem" e as que poderiam ocorrer numa revolução "contra a
ordem". Estas, através uma ruptura abrupta, originária de uma
inconformidade social que os dominadores não poderiam mais controlar pela força
e que constituiria -rapidamente- a "nova ordem", que ele apregoava
como “democrática e proletária”, para encaminhar reformas de caráter
socialista.
Independentemente da
correção das análises desta grande figura acadêmica (e política) do nosso país,
esta dupla hipótese esteve teoricamente posta no ocaso do regime militar. O
regime era largamente apoiado por vastos setores da elite política civil do
país e essa, quando se debatia a dupla possibilidade de uma constituinte (originária
ou derivada), optou pela saída mais conciliatória com o regime: optou, não pela
constituinte originária, cujos integrantes seriam eleitos por voto majoritário
em cada Estado da Federação, mas por uma constituinte derivada, produto de uma
conciliação entre as forças oposicionistas na legalidade (predominantemente no
velho MDB) e os apoiadores do regime em recuo, já transformados em democratas
(predominantemente instalados na ARENA) partido-frente do regime.
Na verdade a ampla maioria
da sociedade brasileira, incluindo aqui o proletariado clássico, os
assalariados de todas as ordens, os setores médios da inteligência técnica
-acadêmica e política- não só não estavam seduzidos pela possibilidade de
construir uma ruptura que levasse ao socialismo, já com muitos sinais de
falência no mundo real, como também não tomavam conhecimento dos grandes
debates que se travavam, nas vanguardas da esquerda, a respeito dos rumos de
uma revolução no Brasil.
Nesta sociedade, já muito
mais complexa do que a sociedade russa do início do século passado, diferente
daqueles países que encaminhavam lutas de libertação nacional (ou guerrilhas
socialistas) - nesta sociedade mais
complexa - o que determinava o fim do
regime era a grave crise econômica. O que impulsionava as mudanças era a
reestruturação da sociedade de classes que o regime militar proporcionara (com
uma grande ampliação do mercado interno), que explodia nos movimentos em defesa
da democracia, que se disseminavam nas próprias classes dominantes. Estas, já
necessitadas de mais diretamente dominar o Estado, inclusive para encaminhar
novas reformas que integrassem melhor o Brasil no cenário global, segundo a sua
visão de país e os seus interesses de classe.
Este momento de crise aguda
do regime amadurece quando a oposição de caráter revolucionário, que se lançara
em ações armadas contra a ordem, já estava dizimada. A “lenta e gradual”
abertura do General Geisel - mais estimulada pela crise do que respondendo a
pressões da oposição legal ou ilegal - se dissemina nos dois partidos
"dentro da ordem". MDB e Arena passaram a compor, através das seções
mais significativas dos seus respectivos partidos, um grande campo de
conciliação para dar uma saída ao regime. Sob controle das lideranças
tradicionais, que se fortaleceram dentro do próprio regime em ambos os
partidos, a redemocratização do país avançava firme e lentamente. Essa saída, ao
mesmo tempo em que afasta, no médio e longo prazo, uma guerra civil no país
(cujos efeitos seriam trágicos para todo o campo democrático e para a própria
unidade política da nação), teve o demérito de manter a transição "sob
controle" e a democracia cativa das velhas oligarquias regionais.
Naquele momento o processo
não é mais controlado pelos militares, como dirigentes políticos que tinham um
"programa" (de direita tecno-burocrático) para o futuro do país,
especialmente no período Geisel, mas passa a ser gerenciado pelas lideranças
civis sob o tacão das oligarquias políticas regionais. A nova unidade transita
da resistência ao regime para um momento mais positivo de restauração da
democracia, embora sem uma visão minimamente unitária de como construir, por
dentro dela, um projeto nacional que integrasse um país profundamente desigual
e reduzisse a miséria e as desigualdades sociais.
Os reflexos deste processo
de transição cobra atualidade nos destinos do PMDB de hoje. Os Governos do
Presidente Lula promoveram o mais formidável processo de distribuição de renda
e inclusão social no Brasil e o fizeram, em função da própria correlação de
forças que emergiu da transição conciliada, sem tocar nos privilégios do
“rentismo” e nas grandes desigualdades sociais que foram, em regra, mantidas.
As condições da economia
mundial à época e a capacidade política do Presidente Lula, que teve apoio incondicional
do PT, do PC do B, do PSB e da ampla maioria do PMDB, principalmente,
encerraram um ciclo da esquerda reformista brasileira no centro do poder, em
condições favoráveis. O que está claro, porém, é que tudo isso passou. A
aventura “centrista” do PMDB já vinha se esgotando dentro do próprio segundo
Governo Lula, quando sua maioria se opunha, terminantemente, à reforma política
e à democratização dos meios de comunicação no Brasil, há muito alinhados –majoritariamente–
com as “reformas” exigidas pelo “rentismo”.
As tarefas do que pode se
chamar de revolução democrática no Brasil de hoje são mais complexas e muito
mais ousadas. Trata-se de reduzir as desigualdades sociais brutais que
permanecem e, através desta redução, alavancar um mercado interno capaz de
dinamizar o consumo e reestimular a economia e os investimentos; trata-se de
radicalizar a cooperação interdependente com soberania, para fugir da tutela
das agências de risco sobre a dívida pública; trata-se de usar o déficit
público -recomenda Paul Krugman- com
“desembaraço” (como fazem os países ricos) para estimular o crescimento e
promover a indústria ; trata-se de fortalecer nosso sistema de defesa, para
afirmar nossos direitos plenos sobre a Amazônia
e sobre as nossas riquezas petrolíferas do Atlântico Sul; trata-se de
ter uma política monetária que se liberte do jugo das agências de risco e de
promover, sem vacilações, a nossa soberania alimentar.
Parece claro que um pequeno
reflexo dos “autênticos” sobreviverá no PMDB e qualquer governo que pretenda
promover um modelo desenvolvimentista de reindustrialização (Bresser) do país,
deverá contar com o apoio destes resíduos de centro-esquerda, num partido que
continuará regionalizado e também atuando de maneira fragmentária no
Parlamento. Esta postura ambígua, aliás, sempre esteve presente através de
lideranças como Pedro Simon, que no Parlamento Federal se mostrava sempre “mais
à esquerda” que os Governos do PT e, no plano regional, era sustentáculo
político de governos direitistas liberais, apoiados, ou do seu próprio partido
no Estado. A postura autêntica, nacional-desenvolvimentista, também permanece
visível no PMDB, em quadros corajosos como o Senador Roberto Requião.
De outra parte, o PMDB, como
instituição, passará a ser o suporte da direita neoliberal, cujas reformas
prometidas colocariam (ou colocarão), os ajustes atuais da Presidenta Dilma
como políticas “moderadas”. Seu programa recente de TV é de uma sinceridade que
merece elogios, porque não engana nenhuma força política a respeito dos seus
objetivos futuros. O “tiro na memória”, que o PMDB deu no velho MDB, foi uma
larga e complexa mutação política. Ela ocorreu num país que saía de um regime
de força, no período de crise da ideia e do projeto socialista, no momento em
que também se formava um partido democrático e de esquerda (PT), que se avocava
como herdeiro das grandes lutas populares do século passado. O tiro do PMDB, na sua origem, foi um tiro no
pragmatismo centrista. O tiro do PT, na sua origem -se ocorrer- será mais um
tiro na utopia.
Tarso Genro – Carta Maior.
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